Ela
ouvia Chico Buarque, Ele Sex Pistols. Ambos cantarolavam melodias distintas e
visões distantes de um mesmo mundo. Ela chovia, Ele fazia sol. Os tempos se
nublavam quando algo estava fora do lugar. Ela dormia cedo, Ele amanhecia
assistindo filmes antigos. Ela dizia não ter medo da morte, Ele tinha pesadelos
constantes com o fim. Ela gostava do
mar, Ele da areia roçando no corpo dela. Roçando ambos como um corpo único,
enfim. Ela gostava de gatos, Ele achava que os pássaros não deveriam pousar em
lugar algum. Ela tinha medo de avião, Ele queria aprender a voar. Ela lia
Bukowski, Ele Joyce. Ela tocava violão, Ele bateria. Ambos em um único ritmo.
Ela falava francês, Ele espanhol. Uma babel de sentimentos. Ela estudava
literatura, Ele jornalismo. Ambos
escreviam crônicas densas demais. Ela comia pão, Ele o miolo. Ela bebia
mocaccino, Ele cappuccino. Pareciam uma pequena versão da Europa nos dias de
chuva. Ela escrevia poemas, Ele contos infantis. Ela queria ter um filho, Ele
enjoava só de pensar. Ela bebia tequila, Ele vodka pura. Ela apreciava seu
abraço quente, Ele sua cintura fina e suas coxas roliças. Ambos ouviam Beatles,
sim. Ela cantava em inglês, Ele fazia palavras cruzadas. Ela acreditava em
reencarnação, Ele acreditava em si. Ela assistia Discovery Channel, Ele curtia
seriados americanos. Ela gostava de moda, Ele vestia o que tinha. Ela fazia
yoga, Ele corria na praia. Ela era dia, Ele era noite. Ela bebia coca-cola, Ele
Pepsi. Ela gostava de branco, Ele de preto. Ela tinha olhos verdes, Ele
castanho-claros. Ela jogava xadrez, Ele curtia pôquer. Ela era o céu, Ele o
inferno. Ela o anjo, Ele o diabo. Ambos caídos.
Um dia os tempos se nublaram. Ele gritava,
Ela ouvia calada. Ele não ligava na hora
do almoço, Ela entristecia. Ele inventava histórias, Ela não acreditava. Ele
chegava tarde, Ela se perdia nas horas mortas. Ele se tornava indiferente, Ela
distante. Mas ainda se queriam. Ao menos, inconscientemente. Ele recebia
e-mails estranhos, Ela se consumia em raiva. Ele esquecia do aniversário de
namoro, Ela esquecia de si própria. Ele
só falava em trabalho, Ela ouvia repleta de culpa. Culpa de não ter visto seu
barquinho afundar como um sonho naufragando. Ele não a olhava mais, Ela ardia
de desejo. Ele omitia, Ela persistia. Ele beijava outras bocas, Ela se
refugiava em outros corpos. Ele ofendia, Ela revidava. Ele quebrava coisas pelo
caminho, Ela juntava os fragmentos de algo que se perdeu. Ele erguia a mão, Ela
silenciava. Ele fazia as malas, Ela renovava o passaporte. Ele pegava um taxi,
Ela ia para o aeroporto. Ele fumava desesperadamente, Ela lia as mensagens
antigas no celular. Ele procurava seu rosto pelas ruas, Ela adormecia no
volante. Ele pensava nela, Ela perdia a direção da sua vida. Ele a perdoava,
Ela capotava em meio à avenida chuvosa. Ele sentia um aperto no peito
inexplicável, Ela assistia a um filme inteiro da sua vida. Ele ligava, Ela não
atendia. Ele a perdoava, Ela não mais entendia. Ele sentia muito.
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