2 de jun. de 2013

Outono e pó




               Ela ouvia Chico Buarque, Ele Sex Pistols. Ambos cantarolavam melodias distintas e visões distantes de um mesmo mundo. Ela chovia, Ele fazia sol. Os tempos se nublavam quando algo estava fora do lugar. Ela dormia cedo, Ele amanhecia assistindo filmes antigos. Ela dizia não ter medo da morte, Ele tinha pesadelos constantes com o fim.  Ela gostava do mar, Ele da areia roçando no corpo dela. Roçando ambos como um corpo único, enfim. Ela gostava de gatos, Ele achava que os pássaros não deveriam pousar em lugar algum. Ela tinha medo de avião, Ele queria aprender a voar. Ela lia Bukowski, Ele Joyce. Ela tocava violão, Ele bateria. Ambos em um único ritmo. Ela falava francês, Ele espanhol. Uma babel de sentimentos. Ela estudava literatura, Ele jornalismo.  Ambos escreviam crônicas densas demais. Ela comia pão, Ele o miolo. Ela bebia mocaccino, Ele cappuccino. Pareciam uma pequena versão da Europa nos dias de chuva. Ela escrevia poemas, Ele contos infantis. Ela queria ter um filho, Ele enjoava só de pensar. Ela bebia tequila, Ele vodka pura. Ela apreciava seu abraço quente, Ele sua cintura fina e suas coxas roliças. Ambos ouviam Beatles, sim. Ela cantava em inglês, Ele fazia palavras cruzadas. Ela acreditava em reencarnação, Ele acreditava em si. Ela assistia Discovery Channel, Ele curtia seriados americanos. Ela gostava de moda, Ele vestia o que tinha. Ela fazia yoga, Ele corria na praia. Ela era dia, Ele era noite. Ela bebia coca-cola, Ele Pepsi. Ela gostava de branco, Ele de preto. Ela tinha olhos verdes, Ele castanho-claros. Ela jogava xadrez, Ele curtia pôquer. Ela era o céu, Ele o inferno. Ela o anjo, Ele o diabo. Ambos caídos.
Um dia os tempos se nublaram. Ele gritava, Ela ouvia calada.  Ele não ligava na hora do almoço, Ela entristecia. Ele inventava histórias, Ela não acreditava. Ele chegava tarde, Ela se perdia nas horas mortas. Ele se tornava indiferente, Ela distante. Mas ainda se queriam. Ao menos, inconscientemente. Ele recebia e-mails estranhos, Ela se consumia em raiva. Ele esquecia do aniversário de namoro, Ela  esquecia de si própria. Ele só falava em trabalho, Ela ouvia repleta de culpa. Culpa de não ter visto seu barquinho afundar como um sonho naufragando. Ele não a olhava mais, Ela ardia de desejo. Ele omitia, Ela persistia. Ele beijava outras bocas, Ela se refugiava em outros corpos. Ele ofendia, Ela revidava. Ele quebrava coisas pelo caminho, Ela juntava os fragmentos de algo que se perdeu. Ele erguia a mão, Ela silenciava. Ele fazia as malas, Ela renovava o passaporte. Ele pegava um taxi, Ela ia para o aeroporto. Ele fumava desesperadamente, Ela lia as mensagens antigas no celular. Ele procurava seu rosto pelas ruas, Ela adormecia no volante. Ele pensava nela, Ela perdia a direção da sua vida. Ele a perdoava, Ela capotava em meio à avenida chuvosa. Ele sentia um aperto no peito inexplicável, Ela assistia a um filme inteiro da sua vida. Ele ligava, Ela não atendia. Ele a perdoava, Ela não mais entendia. Ele sentia muito.

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